”Se há algo certo nessa vida, se a história nos ensinou alguma coisa, é
que se pode matar qualquer um.”
Acho que uma das maiores, senão
até mesmo a maior trama policial de todos os tempos, é, sem dúvida, The God Father. A saga dos gangsters de
Nova Iorque teve maestria na produção para o cinema, com um roteiro
inteligentemente adaptado e atuações no mínimo impressionantes, como a
interpretação de Marlon Brando do
inesquecível Don Corleone. Mas, o que
há além do sucesso cinematográfico da história, o que há de tão especial na saga
d’O Poderoso Chefão - título nacional - que o tenha transformado no imaginário
de gangster mais popular do século XX?
Antes de tentar responder
qualquer coisa ou levantar qualquer outro questionamento, vou fazer um pequeno
resumo do roteiro básico, caso você ainda não tenha assistido à trilogia de The
God Father – e se você aprecia bons
filmes com ótimas atuações, uma boa trilha sonora e tudo mais, esse é um
daqueles que não podem faltar na sua lista, tá?
Vito Corleone – Marlon Brando – éo chefe de um dos maiores grupos
mafiosos de Nova Iorque. Possui uma vasta teia de influência, que alcança desde
donos de pequenos comércios espalhados pela cidade até senadores e juízes
comprados. A ‘família’ Corleone é uma
das maiores entre as que dominam o capital no submundo, é respeitada e, até
certo ponto, temida. Don Vito, ou O Padrinho, como é mais conhecido,
construiu em torno de si um império todo baseado na troca de favores, em ameaças indiretas e na compra de cargos
políticos de seu interesse. Até aí não há nada que justifique o estado de ícone
no qual o personagem foi transformado. Até
aí.
O núcleo social da ‘família’ é
extremamente machista e patriarcal: a mulher é um ser sensível e frágil demais
para responder por si mesma seus próprios atos. Todos vivem sempre sob o olhar
avaliador do Homem da Casa. Logo, podemos concluir que Vito é mais do que simplesmente um chefe, é um líder, um ponto
máximo na cadeia hierárquica dos Corleone,
e deve ser respeitado como tal. Contou com a sorte de um moleque franzino ao
fugir de Corleone, Sicília, sem pai
nem mãe nem qualquer família, todos mortos pelo chefe do tráfico local, e
chegou à América com a condição de viver mais do que com a sorte.
Descobriu, com nada além de
astúcia, que as pessoas se relacionam socialmente num sistema de pedido de
favores e no pagamento desses, e que para que as pessoas façam o que você quer basta
oferecer algo tentador o bastante, algo a que não se possa dizer não. Basta, no fim de tudo, fazer uma proposta irrecusável. Nunca
ameaças, nem agressões diretas, uma boa primeira impressão deve bastar. E se isso não for suficiente, se toda a educação e
vocabulário respeitoso não convencer, digamos que há outras formas eficientes
de convencimento – e terrivelmente desagradáveis
para quem as estiver recebendo. E sob essa lógica há uma das melhores cenas
entre os três filmes.
Mário Puzzo – o autor do
livro que deu origem aos filmes – foi extremamente perspicaz ao pensar o perfil
de Don Corleone, afinal. Trabalhador,
respeitador da família e dos costumes da igreja. Um indivíduo benfeitor,
educado, culto. O Don foi
transformado num tipo de vilão elegante, um populista que ajuda os amigos, cobrando em troca nada além da
devolução do favor, algo que talvez nunca seja pedido, e alguns gestos que
demonstrem respeito.Nada além de respeito
e gratidão.
Vito Corleone tem o
perfil de personagem que vai contra aquilo que – achamos - que a humanidade
deve seguir, não é? É corrupto e assassino, líder de um grupo mafioso e
responsável por diversos crimes fiscais. É um verdadeiro fora-da-lei. Mas, ainda
assim, consegue a aprovação e o carinho do público. Por quê?
Como explicar que um assassino
ganancioso consiga cativar tanto assim as pessoas, e ganhe ainda um tipo de
admiração que vai além do espetáculo das telas? É justamente a forma como
enxergamos o personagem: vemos um indivíduo carismático e justo – entendamos
justo como aquele que não atinge de forma direta os inocentes -, religioso e
que inspira medo e respeito, além de tudo. Você já parou para se perguntar por
que, mesmo com toda uma campanha contra a corrupção, ainda há tantos corruptos
governando o país? A resposta vai muito além de “porque todo político é
ladrão!”, ou “porque o povo não tem memória política, e não sabe votar!”. Está
na forma como enxergamos a política, na forma como a maioria entende que um
governante deve trabalhar. O problema está na nossa forma de avaliar o que é
válido para quem vai representar a população.
O que impera no país, em todo o contorno do
Estado, é o populismo. É uma receita simples, e funciona muito bem. O Sarney, o Jader e o Maluf são
grandes nomes da corrupção nacional – A
Justiça Federal determinou que Paulo Maluf devolva 21,3 milhões ao Estado até o
final de outubro, sem direito a recorrer. Você viu o que eles fazem da
vida, mesmo após tantas acusações e tantos processos? Estão no poder, treinando
futuros substitutos para seus cargos. Candidatam-se, se elegem e se mantêm ali
mesmo.
E é assim que funciona. Don Corleone é o personagem do
populismo; todas as falhas e toda a corrupção ficam encobertas por uma
figura aparentemente generosa e respeitadora, alguém que ergueu para si próprio
um altar, para que todos possam adorá-lo. É assim que funcionam os populistas,
tanto os da vida real quanto os dos romances policiais: Colocam suas imagens no
topo, acima de qualquer acusação, acima de qualquer força de lei e, assim como
os gangsters dos romances, constroem um império particular com falcatruas e
mentiras, compras de cargos e muita corrupção – ou será que eu estou enganado, e todos chegam ao topo porque são ótimos
governantes?
Um personagem que foge da condição de mocinho
romantizado, injustiçado e sofredor; criado para ser amado e temido, esse é
Vito Corleone, O Padrinho, o Don, o Populista. O Poderoso Chefão.